domingo, 19 de agosto de 2007

AOS PILOTOS DO VÔO 3054




Não conheci pessoalmente nem Kleyber nem Stephanini, mas isso não importa. Eram aviadores como eu. Com eles compartilhei o mesmo céu, os mesmos aeroportos, os mesmos prazeres e tensões da profissão.

Talvez um deles, numa tarde perdida no tempo, estivesse na cadeira da esquerda daquele avião alinhado na cabeceira da pista 35L do Aeroporto de Congonhas, aguardando autorização da torre para decolar, enquanto eu, de meu Boeing 737-500, esperava, numa longa fila, a minha vez de entrar na arena.

A cada decolagem, a cabeceira era ocupada pelo avião seguinte, e o mesmo ritual se repetia. Era uma sucessão de momentos solenes e mágicos, como aquele em que o touros encaram os toureiros antes dos embates finais.

Naqueles momentos, éramos todos irmãos. De tribos diferentes, mas irmãos. Sabíamos dos perigos que diariamente nos rondavam. Eram ossos de um ofício perigoso, no qual as conseqüências de falhas humanas são muitas vezes catastróficas.

Éramos todos dependentes emocionais da aviação. Ela nos atraíra desde meninos com força irresistível. Não houve como escapar a seu fascínio. Chegara minha vez.

Da cabeceira da pista, observando a fila de aviões que aguardavam minha partida, sabia que os olhares de meus companheiros estavam postos no Boeing azul e branco prestes a se lançar aos céus.

Éramos novamente os meninos de calças curtas que passavam os sábados e domingos nas varandas abertas dos antigos aeroportos admirando os DC-3, Curtiss Commando, Convair e Constellations pousando e decolando. Éramos os mesmos, apenas nossos postos de observação agora eram melhores. Nunca foi fácil ser aviador.

Enfrentar tempestades, pistas curtas e escorregadias, quase-colisões com outros aviões, acordar de madrugada, dormir tarde, passar noites voando, sacrificar vida pessoal, familiar e sentimental, não ver os filhos crescerem, não ter feriados, natal, ano novo, carnaval, fins de semana com a família nem com os amigos, comer apressado antes das descidas, sofrer de gastrite ou úlcera, embranquecer prematuramente os cabelos.

De muita coisas nos privamos, mas jamais traímos aqueles meninos que um dia olharam para o céu e se deslumbraram; que não concebiam outra profissão que não a de aviador.

Não era um veterano de cinqüenta e muitos anos quem pilotava o avião azul e branco naquela tarde distante; era o menino que eu um dia fora. Aceitávamos os riscos. Sabíamos que um dia talvez a sorte nos fizesse despencar do céu. Mas valia a pena.

Em que outra profissão nos sentiríamos como águias ágeis e velozes? Que outro trabalho nos brindaria com mágicas noites de luar em catedrais de alvas nuvens? Onde mais achar crepúsculos assim?

Quaisquer que sejam as conclusões da investigação em curso do recente e trágico acidente da TAM, estou convicto de que Kleyber e Stephanini não o desejavam; que envidaram seus melhores esforços no sentido de evitá-lo; que esperavam entregar seus passageiros sãos e salvos a seus familiares e amigos. Descansem em paz, companheiros, e um bom vôo para o novo destino.

Comandante Carlos Ari César Germano da Silva

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Um Diploma ou um Sacerdócio?

Que respostas podemos dar à indagação sobre os motivos de se exigir que o profissional de Jornalismo seja formado por uma faculdade?

Digamos, desde logo, que a faculdade não vai "fazer" um jornalista. Ela não lhe dá técnica se não houver aptidão, que denominamos de vocação.

A questão é mais séria e mais conseqüente. A faculdade, além das técnicas de trabalho, permite ao aluno a experiência de uma reflexão teórica e, principalmente, ética.

Não achamos absurdo que um médico deva fazer uma faculdade. É que vamos a ele entregar o nosso corpo, se necessário, para que ele corte, interfira dentro de seu funcionamento, etc.

Contudo, por vezes discutimos se existe necessidade de faculdade para a formação do jornalista, e nos esquecemos que ele faz uma intervenção muito mais radical sobre a comunidade, porque ele interfere, com seus artigos, suas informações e suas opiniões, diretamente dentro de nosso cérebro.

Acho que, pelo aspecto de cotidianidade que assumiu o Jornalismo, a maioria das pessoas esquece que o Jornalismo não é uma prática natural.

O Jornalismo é uma prática cultural, que não reflete a realidade, mas cria realidades, as chamadas representações sociais que interferem diretamente na formulação de nossas imagens sobre a realidade, em nossos valores, em nossos costumes e nossos hábitos, em nossa maneira de ver o mundo e de nos relacionar com os demais.

A função do Jornalismo, assim, é, socialmente, uma função extremamente importante e, dada a sua cotidianidade, até mais importante que a da medicina, pois, se não estamos doentes, em geral não temos necessidade de um médico, mas nossa necessidade de Jornalismo é constante, faz parte de nossas ações mais simples e, ao mesmo tempo mais decisivas, precisamos conhecer o que pensam e fazem nossos governantes, para podermos decidir sobre as atividades de nossa empresa; ou devemos buscar no Jornalismo a informação a respeito do comportamento do tempo, nas próximas horas, para decidirmos como sair de casa, quando plantar, ou se manter determinada programação festiva.

Buscamos o Jornalismo para consultar sobre uma sessão de cinema, sobre farmácias abertas em um feriadão, mas também para conhecermos a opinião de determinadas lideranças públicas a respeito de determinado tema, etc.

Tudo isso envolve a tecnologia e a técnica, o nível das aptidões, capacidades e domínio de rotinas de produção de um resultado final, que é a notícia.

Mas há coisas mais importantes: um bom jornalista precisa ter uma ampla visão de mundo, um conjunto imenso de informações, uma determinada sensibilidade para os acontecimentos e, sobretudo, o sentimento de responsabilidade diante da tarefa que realiza, diretamente dirigida aos outros, mais do que a si mesmo.

Quando discuto com meus colegas a respeito da responsabilidade que eu, como profissional tenho, com minha formação, resumo tudo dizendo: não quero depender de um colega de profissão, "transformado" em "jornalista profissional", que eventualmente eu não tenha preparado corretamente para a sua função.

A faculdade nos ajuda, justamente, a capacitar o profissional quanto às conseqüências de suas ações.

Mais que isso, dá ao jornalista, a responsabilidade de sua profissionalização, o que o leva a melhor compreender o sentido da tarefa social que realiza e, por isso mesmo, desenvolver não apenas um espírito de corpo, traduzido na associação, genericamente falando, e na sindicalização, mais especificamente, mas um sentimento de co-participação social, tarefa política (não partidária) das mais significativas.

Faça-se uma pergunta aos juízes do STF a quem compete agora julgar a questão, mais uma vez, questão que não deveria nem mais estar em discussão: eles gostariam, de ser mal informados?

Eles gostariam de não ter acesso a um conjunto de informações que, muitas vezes, são por eles buscadas até mesmo para bem decidirem sobre uma causa que lhes é apresentada através dos autos de um processo?

E eles gostariam de consultar uma fonte, sempre desconfiando dela?

Porque a responsabilidade do jornalista reside neste tensionamento que caracteriza o Jornalismo contemporâneo de nossa sociedade capitalista: transformada em objeto de consumo, traduzido enquanto um produto que é vendido, comercializado e industrializado, a notícia está muito mais dependente da responsabilidade do profissional da informação, que é o jornalista, do que da própria empresa jornalística que tem, nela, a necessidade do lucro.

Assim sendo, é da consciência aprofundada e conscientizada do jornalista quanto a seu trabalho, que depende a boa informação.

E tal posicionamento só se adquire nos bancos escolares, no debate aberto, no confronto de idéias, no debate sério e conseqüente que se desenvolve na faculdade.

Eis, em rápidos traços, alguns dos motivos pelos quais é fundamental que se continue a exigir a formação acadêmica para o jornalista profissional.

A academia não vai fazer um jornalista, mas vai, certamente, diminuir significativamente, a existência de maus profissionais que transformam a informação, traduzida na notícia, em simples mercadoria.

Danny Bueno

_______________Arquivo vivo: